Conference Championship: Seattle Seahawks
Seattle Seahawks, 28 vs Green Bay Packers, 22
Há jogos assim. Perfeitos. Cativantes. Únicos. Não se trata sequer dum daqueles casos de uso excessivo de elogios. Vi o Seahawks contra os Packers despojado de qualquer preconceito. Não sendo adepto de nenhuma das franquias, usei a final da NFC como puro deleite, um daqueles jogos em que sabemos, antecipadamente, que nos vai ser servido um menu gourmet. Frente-a-frente duas das equipas que melhor têm trabalhado o draft, escolhendo de forma criteriosa, desenvolvendo os seus próprios jogadores, avessos a gastos excessivos na free agency. Era, também, uma final perfeita. De um dos lados, um dos mais glamourosos quarterbacks da actualidade. Aaron Rodgers é, quase unanimemente, considerado o melhor na posição, letal no passe, empático na forma como beneficia os seus receivers, um sagaz dissecador das defesas, quase sem pontos fracos. A sua contraparte, nos Seahawks, é quase isso. Mas em miniatura. E o comentário nem é depreciativo. Russell Wilson tem a mesma forma cool de jogar de Rodgers, esquivando-se a sacks com movimentos fluídos, usando os scrambles de forma punitiva, transformando-se num Houdini dos tempos modernos, que inventa um lance numa situação de aperto. Wilson, no seu 3º ano, merece a ascensão meteórica que tem tido, por ter ultrapassado dogmas e preconceitos, mostrando que, mesmo undersized, pode competir de igual para igual com os melhores.
Era isto que esperava. Um confronto inesquecível, for the ages. Mas nada, mesmo nada, me preparou para o que aconteceu. Todos nós, que embarcamos nesta viagem feita de paixão pelo futebol americano, temos jogos que nos marcaram, por um ou outro motivo. Já, desde 2008, ano em que mergulhei neste delicioso espectáculo, vivenciei muito. Recuperações épicas, proezas inesquecíveis, recordes estilhaçados, desilusões profundas. Mas, repito, nada me tinha preparado para o que se passou. Foi um jogo difícil de catalogar. Se o tivesse que fazer numa só palavra, usaria o termo pesadelo, no ponto de vista dos Seahawks. A franquia de Seattle, rodeada do seu fiel e ruidoso público, parecia que tinha entrado num daqueles episódios do Twilight Zone, uma realidade alternativa, onde tudo corria mal. Mas mesmo TUDO. O ataque foi inexistente, cometendo erros primários, incapaz de circular a bola. Wilson, estranhamente desastrado, não se conectava com os seus receivers. E as intercepções avolumaram-se. Uma. Duas. Três. Quatro. Já lá vamos. Pelo meio, existiu outro turnover, um fumble num retorno de Doug Baldwin. Sempre com um denominador comum. Os Packers pareciam mais motivados, melhores preparados, mais agressivos e esfomeados, sedentos de glória. Foram construindo paulatinamente o resultado, aproveitando os erros, aumentando distâncias. O 16-0 ao intervalo, favorável aos cabeças de queijo, não contava a história toda. A defesa dos Packers jogou num nível elevado, sólida na cobertura do passe, perfeita na run defense, intratável no pass rush. Mas, do outro lado, talvez obliterada pela ineficácia do ataque, a defesa dos Seahawks respondia. Da forma costumeira. Aaron Rodgers testou uma única vez o lado do campo coberto por Richard Sherman, num passe para Davante Adams. Correu mal. O felino cornerback interceptou o prodigioso quarterback. As idas dos Packers à red zone adversária, merce dos erros do ataque dos Seahawks, eram sustidas. Mason Crosby, o kicker, tornou-se na figura do encontro, convertendo as oportunidades. Sim, eram apenas 3 pontos, em vez dos 7 da praxe, mas a máxima de Vince Lombardi, de que mais vale aproveitar um field goal do que desperdiçar os pontos num 4º down, mostrado que continua viva em Green Bay. Os Seahawks acabariam por marcar um TD, reduzindo distâncias. Se tivermos que apontar um momento no jogo em que, de forma subtil, a correlação de forças se começou a alterar, foi esse o exacto momento. Uma drive parada, o special team dos Seahawks em campo, para um frustrante field goal e…
Um momento mágico. Salvador. Um fake field goal, interpretado na perfeição, ludibriando o adversário. Jon Ryan, o punter e holder, depois da simulação do pontapé, por Steven Hauschka, lançou a bola, como se fosse um quarterback. O improvável receiver foi o OT Garry Gilliam. Touchdown. Algo começava a mudar. Lenta, mas inexoravelmente.
Alguém, talvez uma entidade divina, mudou um botão, algures. Tudo o que corria mal aos Seahawks desapareceu. Como que liberta dum feitiço, a equipa acreditou. Não daquela forma desesperada, como num estertor dum moribundo, mas presos dum fundamentalismo de que o sonho de nova final não poderia sucumbir assim. Daquela forma. Perante a sua gente. Começou a história da redenção de Russell Wilson. Quarta intercepção. Morgan Burnett antecipa o movimento do QB e apanha a bola. Faz algo contra natura. Não corre, em busca de jardas ou da glória de um retorno para touchdown. Ao invés, deita-se, parando a jogada. 19-7 no marcador. O receio dum eventual fumble falou mais alto. A ordem era clara. Interessa ter a bola. Desperdiçar tempo. O jogo parecia acabado. O conservadorismo manteve-se. Mike McCarthy optou pelo básico, numa situação destas. Correr com a bola. Os Seahawks acumularam tudo o que era possível junto da linha de scrimmage. Eddie Lacy não teve qualquer hipótese. Foi parado. Uma. Duas vezes. Perdeu jardas. Apenas uma tentativa de passe. Incompleto. Os Seahawks geriram o tempo, de forma quase perfeita, usando dois dos seus três descontos de tempo. Punt. Bola nas 31 jardas de Seattle. Os Packers gastaram apenas 72 segundos. A INT foi totalmente infrutífera.
3:52 para Jogar
69 jardas em 7 jogadas, tirando 1:43 ao cronómetro. Depois do TD revertido a Lynch, Russell Wilson começa a sua história pessoal de redenção. Corre para um touchdown, diminuindo distâncias. 19-14 no marcador. Dois minutos e 9 segundos para jogar.
Faltava ainda a paragem do two-minute warning. E os Seahawks com um desconto de tempo. Duas possibilidades, ambas arriscadas. Um kickoff e, depois, tentar um 3-and-out, deixando que a defesa actuasse e permitisse ainda uma posse de bola. Ou, em alternativa, um onside kick. Qual das duas escolheriam? Pete Carroll opta por esta última. Um onside kick. Ali, o lance que decidiria o futuro da franquia. Morreria na praia ou teria a bola, mais uma vez? O resto da história é sobejamente conhecida. O onside kick foi marcado. A bola sobrevoou as 10 jardas necessárias. Uma série de jogadores elevou-se, no afã de a apanharem. Brandon Bostick, tight end dos Packers, deixa-a escapar por entre as mãos, vendo impotente como ela era agarrada, de seguida, por Chris Matthews, dos Seahawks. O estádio quase veio abaixo, com o barulho ensurdecedor dos fãs. O milagre ganhava contornos de realidade.
2:07 para Jogar
No huddle. Russell Wilson corre e ganha 15 jardas. Two minute warning. Passe de Wilson para Luke Wilson. Mais 8 jardas ganhas. Os Seahawks nas 25 jardas do adversário. Novamente no huddle, com Russell Wilson no shotgun. Snap para Lynch, num read option e o running back faz o resto. Cavalgada de 25 jardas, imparável e novo touchdown. Pela primeira vez no encontro os campeões em título passam para a frente. Por um ponto. Pete Carroll decide ir para o 2-point-conversion, como forma de se colocar a salvo de um eventual field goal do adversário. 1:33 para jogar. Emoções ao rubro. Ninguém consegue permanecer sentado. Em casa, sou acometido pelo mesmo estado febril, acometido por aquele nervoso miudinho. Estava a presenciar um comeback tremendo, um jogo impactante. A história estava a desenrolar-se ali, perante o olhar de milhões. A jogada parecia simples. Um rollout para a direita e 3 linhas de passe para a conversão, com um set de 3 receivers. Tudo correu mal. Wilson é pressionado, foge para a sideline, sem ninguém aberto. Parece eminente o sack. Wilson lança cruzado, para o lado oposto da end zone. Lá, estava Luke Wilson, que tinha participado na jogada como blocker adicional, tentando suster a pressão dos pass rushers. A bola encontra-o, quase milagrosamente. É um lance irreal, como quase tudo no jogo, nestes instantes. Um Hail Mary perfeito. Os Seahawks ficam à frente, por 3 pontos.
1:25 para Jogar
Aaron Rodgers, mesmo debilitado fisicamente, limita-se à posição de shotgun, disparando para Randall Cobb e, depois, correndo para 12 jardas. O tempo passa. A trama adensa-se. Parece um thriller, daqueles qque colocam o espectador à beira de um ataque de nervos, exaustos emocionalmente com tanta tensão. Tudo termina num 4º down. Mason Crosby é chamado a intervir. Maisum field goal. 48 jardas. Frio, o kicker não se intimida com a dose estridente de apupos. Marca. Empate. Prolongamento. Uma pequena pausa para sossegar o ritmo cardíaco. Uma dose de ansiada calma.
Prolongamento
É aqui, nestas ocasiões, que se constroem lendas, que se perpetuam mitos, que se desfazem carreiras. Bola dos Seahawks. Um touchdown e tudo acaba. Wilson ainda consegue um first down, com a bola nas 27 jardas do próprio campo. Depois, uma curta corrida de Lynch e um sack de Julius Peppers. Um 3-and-7. Os Packers cometem um erro. Mais um. Como Marshawn Lynch tinha sido produtivo, na 2ª metade do jogo, resolvem preencher a box, para travar a corrida, desafiando ao mesmo tempo Wilson a lançar downfield. Ele fez-lhes a vontade. A bola sai perfeita, lançada bem atrás do ombro, num arco magnífico, sobrevoando Casey Hayward e aterrando docilmente nas mãos de Doug Baldwin. 35 jardas ganhas. Uma fade route, com Baldwin a sair do slot, exemplarmente executada. Os Seahawks mantêm a pressão. No huddle, retirando vantagens da leitura que faziam. O fundo do campo está vazio. É uma aposta. Arriscada. Um cover zero, sem safeties a patrulharem a zona, com os cornerbacks metidos em “ilhas”, marcando os seus alvos. Jermaine Kearse, alinhando na direita, foge quando é feito o snap, marcado em cima por Tramon Williams. Wilson tem nova leitura perfeita da situação. Se existisse um safety no fundo do campo, teria provavelmente chamado uma jogada de corrida, com um handoff a Lynch. O mesmo cenário do lançamento anterior apresentava-se. Um man coverage, sem apoio. O meio do campo sem ninguém. É para lá que vai a bola. A marcação de Tramon Williams é excelente. A bola é lançada na única janela de oportunidade, sobrevoando o corner e retirando qualquer possibilidade de êxito ao defesa. Kearse, com uma noite até então para esquecer (sem recepções e com duas das INTs de Wilson a acontecerem depois de passes deflectidos nas suas mãos), recebe-a e cai na end zone. TOUCHDOWN. É o início da festa, transfigurada de loucura. Gritos histéricos, choros compulsivos, emoções descontroladas. Como se reage após isto?
Mas há tanto a destacar, num jogo intenso e disputado nos limites:
- Mike Daniels, DT dos Packers, com uma primeira parte soberba, impondo o seu jogo físico e dominando o interior da OL dos Seahawks, impedindo que, por ali, Marshawn Lynch conseguisse correr;
- O jogo de ambos os safeties de Green Bay. Que longa jornada a de Clinton Dix, escolha de 1º round dos Packers que, naquele mesmo estádio, tinha sido medíocre no jogo de estreia. 17 jogos depois, o ex-Alabama infernizou a vida a Russell Wilson, com duas intercepções na 1ª metade e quase conseguindo a 3ª, no 4º e decisivo período. Tal como o colega do lado, o strong safety Morgan Burnett, o impacto viu-se também no jogo corrido, participando activamente na run defense. Burnett teve igualmente uma intercepção, no 4º período, que parecia ter colocado um ponto final no encontro.
- O papel fulcral de dois desconhecidos jogadores do special team de Seattle. Chris Matthews, wide receiver de posição, intrometeu-se na luta pelo onside kick, beneficiando do erro de Brandon Bostick e recuperando a bola que, depois, permitiu o touchdown que colocou os Seahawks à frente do marcador.
- O [enorme] sentido de humor de quem colocou, no estádio, a música “Let it be”, enquanto o árbitro do encontro analisava o touchdown de Marshawn Lynch (não o que colocou os Seahawks à frente, mas o anterior, em que o running back pisou ligeiramente a linha lateral). Uma forma original e criativa de pressão. O árbitro acabou por reverter (bem) o lance.
- Os 55 minutos da secundária dos Packers. Soberba. Pressão sufocante sobre os wide receivers contrários, forçando turnovers e atacando em todo o campo, para parar a corrida. O defensive backfield mostrava os predicados requeridos para a função: velocidade e técnica. Pena que os jogos durem 60 minutos. Quando se defronta uma equipa como os Seahawks, com Lynch e Wilson, o jogo só termina mesmo no fim.
- O esforço estoico e heróico de Earl Thomas e Richard Sherman. O safety, com um ombro deslocado, manteve-se em jogo, suportando dores e efectuando um tackle tremendo a Eddie Lacy. O cornerback, mesmo com apenas um braço funcional, não cedeu, continuando a jogar e mostrando enorme resistência ao atingir Jordy Nelson, após uma recepção do receiver dos Packers.
MVP
Chega quase a ser surreal que, depois da mais desastrada exibição da sua carreira, Russell Wilson possa ser considerado como o jogador mais valioso em campo. Mas a realidade é mesmo essa. Quatro intercepções e uma total incapacidade para criar um ataque ritmado, durante 55 minutos. E, depois, o mesmo Wilson de sempre. Calmo, confiante, letal. Quanta resiliência psicológica é necessário ter para, depois de tantos erros, conseguir comandar 3 drives para TD, pressionado pelo cronómetro? Correr para um TD, alimentar Lynch para outro, lançar um desesperado passe para o 2-point-conversion e, no prolongamento, tentar a big play? Russell Wilson apareceu quando mais importava: no momento das decisões! O uso da read-option, que levou ao seu TD e ao de Lynch, revelou uma crucial dissecação do jogo, depois alterada para o passe, no prolongamento. A sua qualidade em colocar a bola, primeiro em Doug Baldwin, e depois em Kearse, está ao nível dos melhores. Perfeição pura!
Mas é injusto não mencionar e premiar o running back Marshawn Lynch. 157 jardas corridas. Um TD. 122 jardas na 2ª parte. Também aqui, quando a equipa desesperava por uma jogada, o veterano concretizou. Quando os Seahawks, finalmente, serenaram, e o zone scheme apareceu, Lynch destacou-se com a sua forma punitiva de correr, capaz de chegar até ao 2º nível, quebrando tackles. A sua habilidade em open field é quase única, combinando velocidade, poder, aceleração e visão de jogo. A recuperação do onside kick teria sido pífia se não existisse, de seguida, um Lynch, que evitou perdas preciosas de segundos. A sua corrida, de 25 jardas, é igual a tantas outras, na sua carreira, esquivando-se a adversários, parecendo imparável, correndo com ferocidade. Como diz um amigo meu, “seahawkiano” convicto: PAY THE MAN!