Uma Tarde na Liga Portuguesa de Futebol Americano
Os Domingos à tarde, na capital, têm oferta desportiva reforçada. Esqueçam o mainstream. Numa urbe cosmopolita que quer rivalizar com congéneres europeias, há espaço para tudo. Diversificado, ao gosto de cada um, abrindo horizontes, trazendo novidades, importadas de outros lados, numa procura crescente de satisfazer a curiosidade. Para quem, mais do que gostar, venera o futebol americano, o amadorismo da liga portuguesa não é um entrave. Nem choca. Sim, estão lá os postes na end zone, arcaicamente amarrados a uma baliza de futebol. Mas isso revela, para além da falta de meios e das dores de crescimento, muito mais sobre quem lá joga. Ali, naquelas condições, é uma espécie de back to the basics. Ao futebol de rua, jogado com paixão, com fervor, cuja intensidade é enorme. É uma espécie de comunhão, um ritual, partilhado com o público, que não regateia aplausos e incentivos. Não há glamour, mas há raça. Combatividade. Dentes cerrados, músculos retesados no esforço, uma filosofia única do “antes quebrar do que torcer”.
E assim, de passagem pela capital, dei por mim nas bancadas do estádio, situado algures na Picheleira. A tarde de sol, convidativa, o relvado reluzente no seu verde sintético, a meros dois passos, providenciava uma sensação reconfortante, de prazer inócuo. Era o cenário ideal, criando uma sensação de liga familiar, onde todos se conhecem, com os nomes dos heróis de capacete reverenciados, pelos apreciadores nas bancadas.
O jogo encerrava em si mais interesse do que o embate entre duas equipas da cidade, numa espécie de clássico instantâneo em termos de rivalidade. Era a terceira semana da 7ª edição da Liga Portuguesa de Futebol Americano, colocando frente-a-frente os perenes campeões – os Navigators – contra os Devils, apostados em destronar os rivais do trono que nunca conheceu, até hoje, outro ocupante. Era ali, no coração de Lisboa, num local recôndito, que se estreava Collin Franklin, um wide receiver com passagens, mesmo que fugazes, pela NFL, em emblemas como os New York Jets e os Tampa Bay Buccaneers. Num campo com marcações a giz e com os postes da end zone precariamente amarrados a uma baliza de soccer, como simbolizando a luta contra o desporto-rei em Portugal, por um pouco de atenção mediática, iria jogar um atleta que, há 4 anos atrás, perseguia um mundo de sonhos, apenas ao alcance de um punhado de eleitos.
O encontro não defraudou expectativas. Pelo menos, as minhas. Sendo um seguidor confesso e fundamentalista do futebol americano, tinha curiosidade – e admiração – por ver, finalmente, um confronto ao vivo, tentando perceber onde acaba o amadorismo, regra vigente na liga, e começa o profissionalismo. Entenda-se, por este último, a capacidade de aglutinação de regras e jogadas que, até há bem pouco tempo, apenas faziam parte do imaginário de cada um. Era fácil adoptar uma pose sobranceira, e enumerar as gritantes diferenças no jogo, quando comparado com aquele que nos é servido, com pompa a circunstancia, pelo game pass. Mas isso não era justo. Importa sim ressaltar a entrega denodada, a absorção, ainda que limitada, de um playbook com algumas jogadas criativas, o esforço titânico de quem, efectivamente, joga pelo mais puro dos prazeres: o amor à camisola.
O jogo foi desequilibrado, dando a ideia de que os Lisboa Navigators enfrentam, agora, o maior desafio da sua existência. Os Lisboa Devils, com o seu jogo suportado em 3 norte-americanos [o running back Malcolm Gasque, o quarterback Joey Bradley e o já mencionado Franklin], criaram uma enorme diferença qualitativa, expressa no resultado final de 51-8. Pesado? Sim. Inesperado? Também sim, pela expressão do marcador. Lá dentro, é inquestionável que a presença de Franklin trouxe uma nova arma a Bradley. E uma de destruição maciça. Franklin ainda parece algo preso de movimentos, a que não será alheia a adaptação a uma nova realidade, mas a sua experiência foi instrumental para criar novas linhas de passe e dar, aos Devils, uma ameaça letal na red zone adversário. O seu 1.96 de altura, aliados a uma movimentação fluída e a um conhecimento profícuo de rotas, tornaram-no virtualmente imparável, quando colado à linha lateral. A forma espontânea e natural levaram-no a protagonizar alguns dos momentos altos do jogo, como as duas recepções para touchdown, sublimes movimentos, desde o passe (claro destaque para a precisão e equilíbrio no pocket de Btradley), até ao momento de confortar a bola nos braços, pese a marcação cerrada que lhe foi movida.
Seria injusto e penalizador referir, num jogo dominado do princípio ao fim pelos Devils, apenas os norte-americanos. Desde o primeiro momento do jogo – um forced fumble, recuperado pelos Devils – que se assistiu a um espetáculo luso, com Pedro Almeida, outro dos wide receivers do conjunto, a marcar o 1º touchdown do encontro. Pedro Almeida que, aliás, se assumiu sempre como uma ameaça credível, felino na criação de espaços, facto que lhe rendeu um gordo pecúlio nas stats finais: 4 touchdowns recebidos!
No final, entre glória aos vencedores e honra aos vencidos, ficou uma certeza. Temos liga!