O Herói Improvável

Paulo Pereira 18 de Dezembro de 2013 Jogadores, NFL Comments
Herói Improvável

O Herói Improvável

A NFL – é um lugar comum dizê-lo – é uma máquina trituradora, que tanto cria um herói instantâneo como transforma em vilão imediato um jogador caído em desgraça. Num mundo profissional extremamente exigente, as oportunidades são como ar rarefeito para um alpinista em ascensão. Têm que ser aproveitadas de imediato, sob pena de se cair num limbo onde ninguém dá pela nossa existência. Com dezenas de jogos semanais, repletos de acção e jogadas a merecerem destaque, algumas histórias, pequenas, ficam esquecidas. Negligenciadas pelo mediatismo de outros protagonistas. Na Week 15 uma das feel good stories assumiu contornos de fábula. Quase como se fosse a reedição moderna do conto da Cinderela, com protagonistas trocados e adaptados ao século XXI. Michael Thomas era um nome desconhecido. De todos. Mesmo o fã mais empedernido, que passa a vida a memorizar rosters, não saberia identificar o jogador. Thomas, antigo atleta de Stanford, lutava pela manutenção do seu sonho profissional como tantos outros. Aproveitava a benesse de pertencer a uma practice squad, agarrando-se tenazmente à oportunidade, ansiando sempre pelo passo seguinte. O Santo Graal de qualquer atleta de futebol americano. Pertencer ao número mágico. Aos 53 elementos que compõem, oficialmente, um roster. Esta ligação deve ser dolorosa, digo eu, num aparte. Todos os dias envergar o equipamento de jogo; treinar afincadamente; frequentar as instalações; disputar cada lance com energia renovada, tentando mostrar qualidade. Mas, no final, sentir quão ténue é o vinculo laboral, com a separação dos jogadores. De um lado, os eleitos. Os que pertencem ao roster. Uma casta superior. Do outro, os elementos do practice squad. Como se existisse uma linha separatória, mostrando quão distantes são os dois mundos.

Michael Thomas acordou, numa 2ª feira de manhã, em S.Francisco, com o vibrar do seu telemóvel. Com a prenda de Natal, devidamente embrulhada. O seu agente a informar que os Dolphins pretendiam contratá-lo. Para o roster. Num curto espaço de tempo, Thomas viu a sua vida alterada. A balança, que tinha num dos pratos a permanência na practice squad dos 49ers (2 anos consecutivos), pendia visivelmente para esta oferta. Mesmo que fosse efémera. Um dia depois, Thomas estava em Miami. No treino dos Dolphins. Procurando impressionar. A tarefa para o fim-de-semana era a normal, para qualquer journeyman. Auxiliar no special team. A importância do jogo, para a equipa, acentuava a importância da tarefa. Não era um mero jogo divisional. Era um encontro contra a besta negra da AFC East. Os Patriots, que os Dolphins não venciam há 7 jogos consecutivos.
Game day. Tudo a decorrer conforme o previsto. Pelo menos para Michael Thomas. Um tackle, na unidade do special team e a sensação de dever cumprido. Até que…

O Cosmos uniu-se para dar uma oportunidade a Thomas. Imaginem só. 4º período. Os Dolphins, numa bem arquitectada drive de Tannehill, tinham acabado de passar para a frente do marcador. A 1 minuto e 15 segundos do fim. Num jogo que, repito, tinha uma importância enorme para a equipa da Florida, dadas as implicações para os playoffs. Nolan Carrol e Brent Grimes, os corners titulares, saem por lesão. Alarme. E, num passe de mágica, Michael Thomas recebe instruções para entrar. Como cornerback. Ele, que sempre jogou a safety. O seu primeiro snap na NFL. Contra os míticos Patriots. Contra Tom Brady, o poster boy de muita gente. Imagino o nervosismo de Thomas, perdido em campo, sabendo que era o alvo. Sim, porque nestas situações, o quarterback experiente pressente a insegurança. Fareja o medo. E aproveita a aparente fragilidade. Nesta altura, quem não assistiu ao jogo, já sabe o que Brady fará a seguir, certo?

Primeiro snap, passe de Brady para Amendola, a ser marcado por Thomas. Ganho de 11 jardas. Luta contra o cronómetro, num previsível desfecho emocionante. Os Patriots a ganharem terreno, de forma excruciante. Snap 2. Novamente Brady a eleger o lado de Thomas para enviar o passe. Shane Vereen recebeu, para um curto ganho de 2 jardas.

Dava um thriller. Com a música certa, a apimentar o suspense. Bola nas 19 jardas de Miami. 27 segundos no cronómetro. Tcham, tcham, tcham, tcham. Mais um comeback milagroso de New England? Pareceu. Por momentos. Um daqueles segundos que parecem uma eternidade, arrastando-se indolente. A bola saída das mãos de Brady foi numa espiral perfeita para a end zone, onde o veloz Amendola apareceu nas costas de Michael Thomas. A bola desceu, exemplar, dócil, pronta a ser recepcionada. Amendola teve-a nas mãos. Naquele segundo que falei acima. É uma jogada que pode marcar uma carreira. Ou valer, em abono da verdade, uma carreira. Thomas estava batido. Ninguém o crucificaria. Era um zé-ninguém, sem currículo, atirado às feras, por necessidade. A oportunidade dada morreria ali. Provavelmente, Thomas seria dispensado, nos dias seguintes, fazendo o percurso habitual, saltitando de equipa para equipa, à procura de outra hipótese. Mas Thomas lutou. Num gesto que encerrou em si mesmo determinação e desespero, lançou as mãos contra as de Amendola, batendo na bola e fazendo-a tombar no solo. Inútil. Pass incomplete. Grande jogada de Thomas. Mas o jogo não terminou…

Michael Thomas intercepta o último passe do jogo

Michael Thomas intercepta o último passe do jogo
Foto de AP Photo/Lynne Sladky

Os Patriots ficaram encostados à parede. Quarto down. E mais 5 jardas. Último lance do jogo. Última chance para Brady. Noutra altura qualquer, contra outro adversário, até podia existir algum relaxamento, mesmo que mínimo. Não contra ele. Cerebral. Frio. Determinado. Preciso. Letal. Brady lançou a bola, praticamente emulando a jogada anterior, procurando desta feita Austin Collie. Michael Thomas reagiu de forma rápida, cortando a rota e interpondo o corpo entre a bola e o receiver. Intercepção. GAME OVER. E o momento surreal de ver uma equipa a celebrar, abraçando efusivamente um jogador que, a maioria deles, não sabia sequer o nome. A NFL é feita disto também. De contributos anónimos. De heróis improváveis. De pedaços de magia, recordando a todos que, para celebrarmos e vitoriarmos os jogadores que entram em campo, muitos outros ficam pelo caminho. Com qualidade. Mas sem oportunidade. Michael Thomas conseguiu, nem que seja por breves momentos, agarrar o seu sonho. É um jogador profissional. Joga na NFL.

About The Author

Paulo Pereira

O meu epitáfio, um dia mais tarde, poderá dizer: “aqui jaz Paulo Pereira, junkie em futebol americano”. A realidade é mesmo essa. Sou viciado. Renascido em 2008, quando por mero acaso apanhei o Super Bowl dos Steelers/Cardinals, fiz um reset em [quase] todos os meus dogmas. Aquele desporto estranho, jogado de capacete, entranhou-se no meu ADN, assumindo-se como parte integrante da minha personalidade. Adepto dos Vikings por gostar, simplesmente, de jogadores que desafiam os limites. Brett Favre entra nessa categoria: A de MITO.