Uma Dupla Caída em Desgraça
Os Americanos são, por natureza, um povo ultrajado. Mas esse ultraje, muitas vezes, cheira a bafio. Parece encenado. É hipócrita. Fede à distância. Usa o politicamente correcto para se expressar. Vem isto a propósito de quê? Ray Rice.
E antes que alguém me comece já a invectivar, não pretendo fazer uma defesa denodada do jogador. Nem, sequer, usar factores mitigantes, como um daqueles untuosos advogados que vemos nos filmes de tribunal. O recente aparecimento do vídeo, onde aparece a agressão de Rice à então sua namorada, despoletou a onda de choque a que me refiro, colocando no seu epicentro dois homens: um, o perpetrador do abominável acto e o outro, o comissário da NFL, Roger Goodell, mal-amado por tantos.
O que está na génese de tudo isto é extremamente simples. O castigo inicial a Rice foi justo? A resposta parece óbvia. Um rotundo NÃO. E essa peremptória objecção leva, por sua vez, a outra pergunta. Goodell, o mentor do castigo, tem condições para se manter no cargo? E aqui, também de forma célere na formulação da resposta, é um SIM. Claro e inequívoco, separando águas.
Vamos por partes. Quando surgiram as imagens iniciais de Ray Rice a arrastar o corpo inconsciente de uma mulher, a NFL devia ter agido. E agiu. Seguindo os trâmites legais, ouvindo o jogador, a sua justificação e, posteriormente, pesando o seu comportamento momentâneo com o seu histórico. E esse, ao contrário de tantos outros caracteres que pululam na liga profissional, não tinha qualquer mácula. Goodell resolveu, pelo papel activo que o jogador desempenha na comunidade e pelo seu arrependimento, ser benevolente. Cometeu um pecado venial. Rice praticou um crime de violência doméstica. Todos sabíamos, mesmo que, naquele momento, as imagens não estivessem disponíveis. Mas nem importava, para o caso. O próprio jogador, na altura, fez o mea culpa requerido, afirmando que o estado inanimado da namorada – posteriormente transformada em esposa – era resultado duma altercação. Ora…
Dois jogos de castigo, numa liga que não é branda a aplicar penalizações resultantes do uso de estupefacientes, soaram a brandeza. Excessiva. Goodell fez depois, já com a sociedade civil a bramir indignação em todos os quadrantes, uma lei mais musculada, penalizando os casos de violência doméstica com 6 jogos de suspensão (1ª advertência) e expulsão da NFL (2ª advertência). Este makeover dava para sossegar os espíritos inquietos? Dava. Se não fosse exposta, com uma precisão pouco inocente, novas imagens de Rice. E estas, se nada acrescentaram ao caso, permitiram ver em todo o esplendor o soco brutal com que ele mimoseou a companheira. Foi aqui o ponto zero tão do agrado dos jornais sensacionalistas. A exploração das imagens ad nauseum, num linchamento colectivo do jogador. Vamos, chegados a este ponto, dividir o caso em dois.
1- Deve Goodell demitir-se?
Ser comissário na NFL não é um trabalho fácil. Mas é bem pago. E isso atrai a inveja alheia. Segundo rumores, Goodell terá auferido em 2013, entre salário e bónus, qualquer coisa como 44 milhões de dólares. É muito? É. Obscenamente demasiado? Sim. Mas Goodell é um homem de confiança dos donos das franquias e tem efectuado, mesmo com alguns ziguezagues, um trabalho meritório. A NFL é uma máquina de fazer dinheiro, tendo atingido o ponto de maturidade duma liga profissional, produto facilmente exportável para outras realidades, até então avessas a um desporto “esquisito”. O salto qualitativo da liga encontrou paralelo no consumidor. Quando um produto é apresentado de forma a exaltar as suas virtudes, costuma ser consumido com avidez. E essa avidez é mensurável. Em audiências. E estas levam, numa linha recta, a contratos televisivos com demasiados dígitos para serem ignorados. A NFL é uma mina de ouro. E foi Goodell que, qual garimpeiro, encontrou alguns filões para explorar. Por isso, parece-me que a competência do homem em causa, não sendo à prova de bala, é meritória. E responde, por si mesma, à pergunta formulada. Claro que não se deve demitir. Errou na análise inicial do caso Ray Rice, mas isso não deve ser motivo penalizador para quem tem lidado, no seu reinado, com casos desconfortáveis, conseguindo sair deles com a sensação de que foi feita justiça (nesta fase os fãs dos Saints devem estar à beira duma apoplexia, mas os castigos que a franquia sofreu foram, na minha opinião, bem aplicados).
2- Deve Ray Rice ser afastado indefinidamente da NFL?
Não. Claro que não. Se algo, nesta situação, me desagrada de todo, foi a forma tóxica como o jogador tem sido tratado. A sua franquia de sempre dispensou-o, sem apelo nem agravo. Fê-lo de forma totalmente hipócrita. Não acredito, nem por um minuto, que os Ravens não soubessem o que tinha acontecido naquele elevador. E o apoio inicialmente dado ao atleta apenas foi retirado pelo mediatismo das imagens. Isto numa franquia que sempre cultivou a cultura do “bad guy”, passando a ideia dum roster sempre disposto a tudo para vencer. Apetece perguntar, mas a violência doméstica é mais grave e perniciosa do que ter um atleta, como Ray Lewis, envolvido num caso de assassinato?
Numa liga habituada a dar segundas oportunidades, independentemente do grau de repugnância do crime, o caso Rice não pode ser visto de um ângulo diferente. Michael Vick pagou o preço dos seus desvarios, perdendo o emprego nos Falcons e cumprindo tempo de cadeia. E mesmo perante a forte contestação de grande parte do público que consome futebol americano, reergue-se e entrou na liga, ocupando o seu espaço, totalmente reabilitado. Vick não é caso virgem. Olhemos para o famigerado bounty gate, quando os jogadores dos Saints andavam contentes à caça de recompensas, indiferentes aos danos físicos causados aos adversários. O mentor do doentio sistema, Greg Williams, foi também afastado, por tempo “indeterminado”, mas já está novamente na ribalta, curiosamente recuperado em apenas um ano.
Rice, por sua vez, mereceu o público perdão da esposa. Dir-me-ão que isso, para além de parecer encenado, não chega. Obviamente. Não chega. Mas é apenas um acto de contrição. Que deve servir de passo 1 na caminhada de recuperação do jogador. A NFL pode tentar ser uma liga modelo, sabendo que o(s) exemplo(s) dos jogadores são repercutidos em milhões de jovens. Mas nunca o conseguirá. A NFL não é um micro-cosmos. Reflecte, tão só, num espaço concentrado, os desafios das sociedades modernas. A forma como lida com os desafios é que tem que ser avaliada. Sempre tive, até agora, Goodell na conta dum comissário credível. E tudo estaria terminado, neste caso Ray Rice, se a disciplina inicial tivesse sido mais pesada. Foi uma falha. Grave, é um facto, que não deve ser vista com condescendência, mas que não assombra o legado que, até agora, tem sido deixado por ele.